Total 90s — XXVI

Neste mês: um pequeno filme independente que lucrou tanto que até parece bruxedo; uma série de ficheiros confidenciais para crentes e cépticos; uma cartada musical que facilmente apareceu e desapareceu e um mal residente que parece não ter fim.

Filme: ‘O Projecto Blair Witch’ — The Blair Witch Project (1999)

Três estudantes chegam à cidade de Burkittsville, no estado de Maryland, em Outubro de 1994 para executar um trabalho curricular: um documentário sobre o célebre caso da Bruxa de Blair, uma tal Elly Kedward que no século XVIII terá sido queimada acusada de bruxaria e do desaparecimento de várias crianças da região. Heather, Michael e Joshua começam por entrevistar alguns dos residentes de Burkittsville, que antes se chamava Blair, sobre memórias ou eventos macabros relacionados com a bruxa. Os três partem para a floresta de Black Hills, perto da cidade, equipados com uma câmara de vídeo Hi-8 e uma câmara de filmar CP-16 e para nunca mais voltarem a ser vistos. O caso foi arquivado e três anos depois são encontradas as cassetes e as bobinas com o registo da sua expedição pela floresta ao longo de oito dias.

O desenvolvimento do projecto começou em 1993. Enquanto estudantes de cinema da Universidade Central da Flórida, Daniel Myrick e Eduardo Sánchez inspiraram-se para fazer o filme depois de perceberem que achavam os documentários sobre fenómenos paranormais mais assustadores do que os filmes de terror tradicionais. Os dois decidiram criar uma longa-metragem que combinasse os estilos de ambos. Myrick e Sánchez desenvolveram um argumento de 35 páginas para a sua obra, pretendendo que o diálogo fosse improvisado. Os realizadores colocaram um anúncio numa revista em Junho de 1996, pedindo actores com fortes capacidades de improvisação. Os três actores selecionados receberam aulas de como operar uma câmara e então foram levados para ficar oito dias na floresta, algumas vezes privados de sono e alimento e sem saber mesmo onde estavam. A produção estava camuflada e escondida no meio da floresta e tudo foi feito para que o filme parecesse o mais real possível. De dia, entre os intervalos das filmagens, eram dadas ideias de falas improvisadas. À noite, a produção assustava-os com ruídos, gritos, objectos de feitiçaria e tudo o que pode ser visto no filme. Eles nunca sabiam o que iria acontecer ou o que iriam encontrar.

O êxito de ‘O Projecto Blair Witch’ deve-se ao facto de Myrick e Sánchez terem construído uma história fictícia extremamente credível e publicitada com arte e engenho como verdadeira por uma excelente operação de marketing. Os realizadores possivelmente criaram um novo subgénero dentro do terror — filmes de found footage (“gravação encontrada”) ou pelo menos popularizaram-no ao ponto de começarem a surgir vários outras produções de semelhante premissa. Na obra inovadora dos jovens cineastas norte-americanos tudo se resume a longos planos-sequência de câmara à mão em que cada um vai filmando os outros ao longo da sua progressão na floresta. Acredita-se que ‘O Projecto Blair Witch’ tenha sido o primeiro filme comercializado principalmente pela Internet. Kevin Foxe tornou-se produtor executivo em Maio de 1998 e contratou a Clein & Walker, uma empresa de relações públicas. O site oficial do filme foi lançado em Junho, apresentando relatórios policiais falsos, bem como entrevistas ao estilo dos noticiários e respondendo a perguntas sobre os alunos “desaparecidos”, contribuindo para desencadear debates na Internet sobre se o filme era um documentário da vida real ou uma obra de ficção.

Fui ver ‘O Projecto Blair Witch’ ao cinema com amigos e, apesar de já saber que era uma história forjada, ainda residiam na minha mente algumas dúvidas se pelo menos seria baseada em acontecimentos verídicos. O maior elogio que posso fazer ao filme é que durante os seus 81 minutos de duração somos levados a pensar que estamos mesmo a ver a gravação dos estudantes “desaparecidos” e onde o som, à falta de imagem nítida na escuridão, assume-se como personagem principal nas mais tensas partes finais. Não é um grande filme, nem sequer um dos meus preferidos no género do horror, mas a experiência de ter visto pela primeira vez no cinema e numa sala em que os restantes espectadores unanimemente mantiveram o silêncio foi quase que uma experiência sensorial. Voltei a rever a obra 23 anos depois, agora em casa, e o impacto não é comparável ou memorável, assim como não foram as suas sequelas ‘O Livro das Trevas: BW2’ (2000) e ‘O Bosque de Blair Witch’ (2016). Numa época em que as técnicas digitais podem-nos mostrar quase tudo, o filme original é um lembrete de que o que realmente nos assusta são as coisas que não podemos ver. O barulho no escuro é quase sempre mais assustador do que a razão do mesmo.

Série: ‘Ficheiros Secretos’ — The X-Files (1993–2002)

Os agentes especiais do FBI, Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson), investigam os Ficheiros Secretos: casos não solucionados envolvendo fenómenos paranormais. Mulder acredita na existência de extraterrestres e em paranormalidade, enquanto Scully, uma médica céptica, é designada para fazer análises científicas das descobertas de Mulder e propor alternativas racionais ao seu trabalho. Ainda no começo da série, ambos os agentes tornam-se alvo de uma trama conspiratória e passam a confiar apenas um no outro e em poucas outras pessoas. Os agentes também descobrem os planos do governo em manter a existência de vida alienígena um segredo. Além dos episódios que ajudam a explorar esta história maior contada pela série, há também histórias curtas, que lidam com o paranormal, contadas em apenas um episódio.

Em 1992, o novo presidente da Fox Broadcasting Company, Peter Roth, chamou Chris Carter para produzir uma série para o canal. Apesar de anos a trabalhar em comédias, Carter tinha a ideia de fazer uma produção sombria, que descreveu a Roth como uma versão mais nova de ‘Kolchak: The Night Stalker’ (1974–75), que também teria inspiração nas séries clássicas ‘A Quinta Dimensão’ (1959–1964) e ‘Alfred Hitchcock Apresenta’ (1955–1962). Em entrevista, Chris Carter falou sobre o processo de criação da série e das suas personagens principais: “Mulder e Scully surgiram directamente do fundo da minha imaginação. Uma dicotomia. Eles representam as partes equivalentes ao meu desejo de acreditar em algo e a minha incapacidade de acreditar em tal coisa. O meu cepticismo e a minha fé. E a criação desses personagens foi extremamente fácil para mim. Eu queria, assim como várias outras pessoas, passar pela experiência de testemunhar um fenómeno paranormal. Ao mesmo tempo em que eu não queria acreditar nisso, questionava-me. Eu acho que esses personagens e essas vozes surgiram dessa dualidade.”

‘Ficheiros Secretos’ foi um sucesso para o canal norte-americano Fox e recebeu críticas amplamente positivas. As primeiras sete temporadas tiveram David Duchovny e Gillian Anderson em igualdade como protagonistas. Na oitava e nona temporada, Anderson continuou enquanto Duchovny aparecia esporadicamente. Novos actores foram adicionados ao elenco principal: os agentes do FBI John Doggett (Robert Patrick) e Monica Reyes (Annabeth Gish), e também o chefe de Mulder e Scully, Walter Skinner (Mitch Pileggi) foram promovidos ao elenco principal. Inicialmente considerada uma série com uma legião específica de fãs, tornou-se parte da cultura popular que indagou temas como descrença a governos, teorias da conspiração e espiritualidade. Tanto a série em si quanto os seus actores principais receberam múltiplas nomeações e prémios e, à época da sua conclusão, foi a série mais longa de ficção científica da história da televisão norte-americana. Em 1998, a criação de Chris Carter teve a sua primeira incursão no grande ecrã com o filme homónimo ‘Ficheiros Secretos’ a servir de ligação entre a quinta e a sexta temporada da série. Já o segundo filme — ‘Ficheiros Secretos: Quero Acreditar’ foi lançado em 2008, seis anos após o final original da série, mas sem o mesmo sucesso. Quando se pensava que os ficheiros estivessem arquivados de vez, Mulder e Scully voltaram surpreendentemente ao pequeno ecrã para mais duas temporadas em 2016 e 2018.

Comecei a interessar-me mais por ‘Ficheiros Secretos’ curiosamente só após o filme de 1998 com o mesmo nome. Até lá via esporadicamente alguns episódios que em Portugal eram transmitidos na TVI mas que talvez por na altura ser pré-adolescente não me puxaram suficientemente para assistir de forma assídua. Após ver o filme realizado por Rob Browman e por ter colegas da faculdade fãs da série, a situação mudou e passei a acompanhar a mesma com regularidade, fazendo de todas as terças-feiras um dia de debate do episódio da noite anterior. Mesmo tendo expandido a sua exibição televisiva, hiatos temporais incluídos, até 2018, ‘Ficheiros Secretos’ é, no seu âmago, uma série dos anos 90 e marcou principalmente essa geração. No entanto, mesmo quem nunca a acompanhou, seja no pequeno ou grande ecrã, reconhece a mítica música do genérico, com efeitos de assobio e eco, da autoria de Mark Snow e que continua a servir frequentemente para ilustrar uma situação de mistério. A verdade continua lá fora.

Música: ‘Easy Come and Go’ — Joker (1992)

Fundados em 1990, os Joker foram uma banda portuguesa de rock com uma carreira interessante mas bastante efémera. O quinteto original, oriundo de Cascais, consistiu no vocalista Tiago Gardner, teclista José Vasconcelos, baixista Hugo Granger, guitarrista Paulo Ferreira e baterista Hugo Pereira, sendo este último substituído por Luís Páscoa antes ainda da banda assinar contrato com a Polygram. A editora discográfica ficou convencida com a demo de cinco canções e com os primeiros concertos dos Joker, que apresentavam inicialmente um som com características entre o metal e o hard rock, e que começou a estabilizar neste último estilo musical na altura em que avançaram para estúdio para gravar o seu primeiro álbum.

Produzido pela própria banda em conjunto com Kalú (Xutos & Pontapés) e Fernando Rascão, ‘Ecstasy’ surgiu nas lojas nacionais em 1992 de forma discreta até ao momento em que o seu primeiro single começou a “explodir” nas rádios por todo o país. ‘Easy Come and Go’ colocou os Joker no mapa musical português, numa altura em que não era muito frequente ouvirem-se bandas nacionais a cantar em inglês ou, pelo menos, a ter sucesso dessa forma. Uma power ballad bem produzida e ao estilo do melhor que se fez lá fora no género, com um refrão forte e um bom solo de guitarra, a canção rapidamente escalou até ao topo das tabelas nacionais. Em Novembro desse mesmo ano, os Joker abriram espectáculos para os norte-americanos Extreme e os ingleses Thunder no Pavilhão Dramático de Cascais e começaram a angariar uma considerável legião de fãs.

Em 1994 lançaram um segundo disco — ‘Egg Nightmare’ — mais progressivo e com aproximações ao estilo grunge dominante da época mas que não teve a mesma aceitação da crítica e do público. Sem grande promoção ou singles associados, o álbum pouco vendeu e o grupo começou a desaparecer da cena musical para nunca mais se saber nada sobre o mesmo. A dissolução dos Joker nunca foi oficialmente anunciada nem sequer explicada mas crê-se que o fim do contrato com a Polygram e a falta de apoios no meio musical tenha desiludido a banda e provocado abruptamente o seu fim. Dos seus membros só do vocalista Gardner se conhece aos dias de hoje uma ligação à música, estando ligado à produção e tendo feito uma participação em 2019 na canção ‘Gloria (Shooting Dark Clouds With an Empty Gun)’ do compatriota Pedro Cunha no seu projecto Ah Nuc.

Quando ‘Easy Come and Go’ começou a passar nas rádios pensei, tal como outras pessoas, que se tratava de uma banda estrangeira. O som assemelhava-se muito a nomes de sucesso do hard rock da segunda metade dos anos 80, com baladas preenchidas por vozes poderosas, guitarras virtuosas e um toque de sintetizador. Quando um locutor da Rádio Energia ou da Super FM anunciou que se tratava de uma banda portuguesa fiquei surpreendido pela positiva. Lá por casa não chegámos a ter nenhum dos dois álbuns dos Joker mas o videoclipe do maior êxito tínhamo-lo gravado numa cassete VHS. É lamentável que a carreira do quinteto de Cascais não tenha durado mais do que metade de uma década e dá que pensar porque não vingaram mais do que prometiam. Costuma-se dizer-se nestas situações que uma banda ou artista estavam à frente do seu tempo mas no caso dos Joker creio que foi precisamente o contrário. O hard rock característico da banda era bom mas pertencia a um passado recente que o grunge e outros estilos musicais ajudaram a colocar em vias de extinção.

Videojogo: ‘Resident Evil’ (1996)

Em 1998, crimes bizarros começam a assolar a pequena localidade de Raccoon City. As vítimas são brutalmente assassinadas e os seus corpos apresentam sinais de canibalismo e violência extrema. O departamento de polícia de Raccoon decide enviar o seu esquadrão de elite, os S.T.A.R.S. (Special Tactics and Rescue Service) para cuidar do caso. A primeira equipa enviada é a Bravo, que perdeu contacto com o quartel-general minutos após entrar na área da floresta. Após 24 horas sem contacto via rádio, a equipa Alpha é enviada e é surpreendida ao encontrar o helicóptero da outra equipa completamente abandonado. Enquanto investigavam os arredores em busca de pistas sobre a localização dos agentes desaparecidos, Joseph Frost, um dos membros da equipa Alpha, é atacado mortalmente por cães selvagens, que aparentam estado de decomposição avançada. Abandonados por Brad Vickers, piloto da equipa que entra em pânico e foge com o helicóptero, os agentes Chris Redfield e Jill Valentine vêem-se sem outra opção a não ser refugiarem-se numa sombria mansão abandonada.

Concebido pela primeira vez pelo produtor nipónico Tokuro Fujiwara como uma recriação do seu antigo jogo de terror ‘Sweet Home’ (1989), o desenvolvimento de ‘Resident Evil’ para a Capcom foi liderado pelo compatriota Shinji Mikami. Passando por várias reformulações, o jogo foi primeiramente desenvolvido para a Super Nintendo em 1993, depois como um jogo de PlayStation em primeira pessoa totalmente 3D em 1994 e, finalmente, como um jogo em terceira pessoa com cenários pré-renderizados para a primeira consola da Sony. A jogabilidade consiste principalmente de acção em terceira pessoa com ênfase adicional na gestão de inventário, exploração e resolução de quebra-cabeças. ‘Resident Evil’ estabelece muitas convenções vistas posteriormente na série e até no género de survival horror, incluindo uma elaborada história de fundo e caracterização de personagens, esquema de controlo, sistema de inventário, tipo de gravação da campanha e o já referido uso de modelos 3D sobrepostos por fundos pré-digitalizados.

O personagem selecionado, entre Chris ou Jill, é um membro dos S.T.A.R.S. que está preso numa mansão cheia de criaturas hostis. O objectivo do jogo é solucionar os mistérios do local e, finalmente, escapar. Para cumprir esse desígnio, o jogador encontra documentos que informam sobre a narrativa, além de pistas que ajudam a resolver os quebra-cabeças dentro da mansão. O jogador usa armas de fogo para se defender dos inimigos, embora as munições sejam limitadas. Para restaurar a saúde do personagem, são utilizados sprays de primeiros socorros e ervas curativas que podem ser misturadas em diferentes combinações para diferentes efeitos de cura. A capacidade de inventário é limitada e os itens encontrados podem ser armazenados em baús localizados em salas específicas para serem recuperados para uso posterior. Para salvar o progresso no jogo é necessário usar uma fita de tinta em uma das máquinas de escrever espalhadas pela mansão. Os jogadores encontrarão várias criaturas como zombies, cães zombies, aranhas gigantes, corvos, entre outros, pelo que o uso racionado das escassas munições é fundamental.

Conhecido no Japão como ‘Bio Hazard’, o jogo teve que ser renomeado para o mercado norte-americano porque já existia uma banda de heavy metal e um videojogo com nomes muito semelhantes. ‘Resident Evil’ foi o escolhido e o título acabou por ser alargado ao resto do mundo, dando início à maior franquia da Capcom (superando, inclusive, a de ‘Street Fighter’), com 10 videojogos “base” e vários spinoffs e remakes que elevam o número de videojogos da série quase às três dezenas e sem fim à vista. É também uma das maiores franchises do mundo, ao incluir sete filmes, várias séries de animação e imagem real, bandas-desenhadas e livros, para além de todo um conjunto de merchandising relacionado. Apesar de não ter tido a PlayStation original, acabei por comprar o primeiro jogo para correr na PS2 pelas boas referências que já tinha lido sobre o mesmo nas revistas da especialidade. Foi uma escolha acertada, na altura não fazia a ideia de que um videojogo pudesse assustar, e mesmo não tendo chegado ao fim do mesmo (a falta de munições foi um problema), a verdade é que ‘Resident Evil’ fez escola na história dos videojogos e ainda hoje o survival horror é um dos subgéneros que mais aprecio jogar.